Sérgio Sant'Anna: Um autor deitado em experimentos


Texto: Isaac Lira - Jornal da Tribuna do Norte de 18.11.2012

Após um hiato de quase oito anos, o escritor Sérgio Sant´Anna voltou a publicar em 2011. No retorno, os anos longe das publicações foram compensados com dois livros lançados em pouco mais de um ano: O Livro de Praga, da coleção Amores Expressos, e Páginas sem Glória, disponível para os leitores desde o dia 14 de setembro deste ano. Os dois trabalhos foram recebidos por crítica e público sobre o mesmo prisma que acompanha a carreira do escritor carioca desde o lançamento de seu primeiro livro, no fim da década de 60. Um trabalho "experimental".

O rótulo talvez não seja suficiente para definir a obra de Sérgio Sant´Anna, mas o escritor afirma não se sentir desconfortável ao ser chamado de experimental. "Ela é dada pelos críticos, talvez porque eu passeie entre várias formas de  fazer ficção. Eu me sinto à vontade com a definição", aponta, antes ressalvando: "Eu não busco, quando escrevo, esta classificação de experimental".

Nos seus dois mais recentes trabalhos, Sant´Anna não deixou de fazer jus à classificação. O Livro de Praga foi encomendando como um romance ambientado na cidade tcheca, tendo uma "história de amor" como pano de fundo. O resultado saiu à esquerda da encomenda: são sete narrativas interligadas que "podem ser lidas como um romance", e falam de amor a partir do sexo, erotismo, taras e perversões. Já Páginas sem Glória, o mais recente trabalho, tem dois contos e uma novela. Em Entre as Linhas, por exemplo, o enredo parte da análise de uma leitora sobre o livro de um amigo (veja trecho), dando ares metalinguísticos, termos que o próprio Sant´Anna rejeita.

Sérgio Sant´Anna irá fechar a segunda noite do Festival Literário de Pipa, às 21h30, do dia 23 de novembro (sexta-feira). A mesa terá como tema as "Narrativas de Amor e Arte". Confira sua entrevista:

Como se deu a seleção das narrativas? O senhor tinha mais contos e novelas à disposição? Por que escolheu essas três especificamente?
Eu tinha mais contos à disposição sim. Novelas não. E fiz uma seleção rigorosa do melhor, de maneira a lançar um livro de muita qualidade, no meu entender.

Neste novo livro, assim como em vários outros, costuma-se colocar a etiqueta de experimental no seu trabalho. O senhor se sente confortável com essa definição?
Eu não busco, quando escrevo, esta classificação de experimental. Ela é dada pelos críticos, talvez porque eu passeie entre várias formas de  fazer ficção. Eu me sinto à vontade com a definição.

O primeiro conto do Páginas sem Glória traz de certa forma um tema recorrente, que é a metalinguagem. O senhor poderia falar um pouco sobre o enredo? Por que, na sua opinião, esse tema é recorrente?
Eu diria que o termo metalinguagem já cansou. Mas me pareceu bastante interessante que nesse conto, Entre as linhas, o conto seja o comentário de uma mulher sobre o livro de um amigo. E a história surge assim, pelo comentário dessa amiga.

Outro tema tratado em Páginas sem Glória é o futebol, que também já havia sido abordado pelo senhor em outros trabalhos. Por que esse tema lhe chama a atenção? Há quem diga que a literatura brasileira não produziu ainda um grande romance ou uma grande história sobre o futebol. O senhor concorda?
Eu gosto muito de futebol e acompanho, desde sempre, os jogos do Fluminense, que por sinal vai bem. Estão sempre dizendo que ainda não foi realizada, na literatura, a grande história do futebol. Talvez não tenham prestado atenção que Páginas sem Glória é a novela do futebol brasileiro. Situei a ação em 1955 porque nesta época, ainda garoto, eu vivia nos campos do Rio de Janeiro e acompanhava o Fluminense "de dentro". Meu tio era diretor do clube, o que me dava este acesso. Tive um outro tio, Carlos (apelido Secura), que foi goleiro amador do Fluminense. Não cheguei a conhecê-lo, porque morreu aos 25 anos, de tuberculose, o que o fez largar o futebol e a medicina, em que havia se formado.

O seu trabalho lançado antes do Páginas sem Glória faz parte da coleção Amores Expressos. O Livro de Praga, contudo, traz sexo, taras, perversões, desejo, arte, etc. Onde está o amor? O senhor se esforçou para oferecer uma visão fora do clichê?
O amor está no próprio erotismo que perpassa o livro inteiro.

À época do lançamento do livro, foi quase um consenso que se trata de sete contos com enredos interligados, o que perfaz um romance. Essa ideia está dentro do que o senhor vê no livro ou não há essa preocupação de classificar?
Sim, são narrativas interligadas, que podem ser lidas como um romance. Prefiro o termo  narrativas, em vez de contos, porque é um termo mais aberto, como o próprio Livro de Praga.

O protagonista do "Livro de Praga" diz estar na cidade tcheca por conta de "um projeto privado que envia escritores brasileiros a várias cidades do mundo", numa clara referência ao projeto Amores Expressos, que de fato lhe levou a Praga. Até que ponto a estória é baseada na sua experiência pessoal naquela cidade?
 A história do Livro de Praga não tem nada a ver com a minha experiência concreta em Praga. Lá na capital tcheca eu apenas flanava por toda a parte, deixando minha imaginação fluir e fazendo anotações.

Há referências a Kafka no texto, até porque o escritor tcheco viveu em Praga. Trata-se de uma referência interessante: uma personagem diz ter tatuado trechos inéditos do escritor no corpo. Foi difícil utilizar uma referência de um autor tão cultuado sem cair no mais do mesmo? O senhor sentiu algum "pudor" por conta do "culto" ao escritor?
Kafka, quer a gente queira ou não, é uma referência obrigatória em Praga. Fui várias vezes ao Novo Museu Kafka, bárbaro, e achei interessante ele surgir em forma de uma narrativa tatuada - e falsa. Um falso Kafka.

A coleção Amores Expressos traz uma série de romances feitos "por encomenda", já que o escritor parte para uma cidade escolhida pelo projeto com esse propósito definido. É mais difícil escrever "sob encomenda"?
É mais difícil escrever sob encomenda, mas a história de amor ... e sexo, que eu escrevi, fugiu bastante da encomenda.

O seu primeiro livro foi lançado em 1969. Depois de 40 anos de ofício, é possível sobreviver de literatura?
 Não, não consigo sobreviver de literatura. Tenho uma aposentadoria. Mas já ganho alguma coisa com a literatura, embora, ao escrever, não pense o que ganharei com aquela história ou aquele livro.

O senhor tem dois livros de poesia lançados, todos há mais de 20 anos. Parou de escrever poesia? O senhor se considera um poeta?
 Eu só escrevi poesia - e bastante experimental - quando senti um apelo muito forte nesse sentido. Não senti mais este apelo e não me considero um poeta, embora tenha sido um, em dois casos excepcionais.

Em tom de deboche, o senhor disse certa vez: "é mais fácil encontrar um escritor com um Jabuti do que sem um Jabuti". Ao mesmo tempo, no seu "currículo" constam, se não me engano, três prêmios Jabuti, além de outras premiações. Para que servem os prêmios?
Na verdade eu já ganhei quatro jabutis, pelos livros, O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, Amazona, Um crime delicado e O vôo da madrugada. Bem, o prêmio serve para o autor ganhar algum dinheiro e divulgar seu trabalho. Prêmio é bom quando a gente ganha (rs)

A literatura argentina ainda lhe agrada? Continua considerando "uma das melhores do mundo"? Que livros indica?
A literatura argentina ainda me agrada muito e a considero mesmo "uma das melhores do mundo". Indico todos os livros  de Borges, os livros de contos de Cortázar, os romances de César Aira (por exemplo: Como me tornei uma monja.), Ricardo Piglia ( Formas breves e A cidade ausente).

Trecho do conto "Entre as linhas"  (do livro Páginas sem Glória)

"Eu estava sentado numa poltrona, ela num sofá, diante de mim. A nos separar, uma mesa baixa, sobre a qual havia uma jarra com mate, um balde com gelo, e dois copos. Em suas mãos, as páginas impressas com a pequena novela que eu concluíra havia cinco dias e lhe enviara por e-mail, pedindo que ela a lesse o mais brevemente possível. Tão logo o fez, convidou-me a ir ao seu apartamento naquela noite de segunda-feira. De todos os meus amigos e amigas era nela que eu mais confiava para emitir um juízo crítico organizado, e nem por isso frio, sobre o meu trabalho. E, de fato, entre as linhas do meu texto, ela fora rabiscando outro texto, que lhe servia de base para o que ia me dizendo, embora, evidentemente, não se impedisse de formular outros pensamentos ali mesmo. Ela me pediu que só a interrompesse quando julgasse absolutamente necessário, pois, definitivamente, não queria entrar em discussões comigo, e sua fala devia fluir com toda a liberdade. Para não perder nada do que ela dissesse, eu levara um gravador, que deixara ao seu lado, no sofá. Por três vezes, ela teve de parar, para que eu trocasse a fita no aparelho. E cada um se levantou para ir ao banheiro uma vez. À parte esses intervalos necessários, não a interrompi em momento algum, pois me fascinava de tal modo o texto que ela ia pronunciando, que essa peça crítica - e, por que não dizer?, também literária e até poética - terminou por tomar, com retoques meus de acabamento, o lugar de minha novela, tornando-se um novo produto que deve ser debitado a nós dois, como se poderá conferir pelo seu resultado. Pois, se a maior parte das palavras do texto final foram ditas por ela, não poderiam existir sem a obra que lhes deu origem, e, muitas vezes, com ela até se confundem.

- Não sei, esse lado seu sombrio, até mortífero - ela disse. - E essa busca sua por demais intencional de beleza, como se isso o redimisse de tanta morbidez e melancolia. Como se você fosse, antes de tudo, um descritor de cenários, sensações e composições - ela disse. - Essas flores que você chama de noturnas pendendo de um vaso na pequena sala do apartamento; a representação de um quadro e de uma gravura, no quarto e na sala; o crucifixo na parede sobre a cama de Pedro; de frente para ele, na outra parede, o quadro com Viviane nua, mas com o seu corpo decomposto em signos do seu sexo - ela disse. - Mas como se você fosse também, repito, um descritor de sensações. O cheiro que Pedro julga sentir da maresia, embora a praia esteja a dois quarteirões de distância do seu edifício; ou mesmo o rumor, ao longe, das ondas quebrando na areia, que ele tem a impressão de escutar - ela disse. - Uma beleza talvez suspeita e aliciante, como a música, dessas que tocam nos carrosséis, que às vezes assoma à mente de Pedro, correspondendo ao que está impresso na gravura da sala, com o garoto sentado sobre o cavalinho que estará girando, girando, subindo e descendo.