Bené Fonteles escreve sobre 'Poética Gonzaguena: inspirações e parceiros''



Convidado para o debate que abre as mesas literárias do sábado, sobre "A poética musical de Luiz Gonzaga", o escritor Bené Fonteles envia texto exclusivo para o www.flipipa.org  Confiram as reflexões do autor de "O Rei e o Baião".

Por Bené Fonteles

Luiz Gonzaga sabia de có e coração a cartografia ambiental e sentimental do povo e do sertão nordestino.
Por isso, naturalmente deixou fluir e influir uma lírica poética que vestiu os versos tantos de seus muitos parceiros “cheirando a bode”. Era assim que ele se referia carinhosamente a Zé Dantas, talvez o parceiro que mais sentido deu às coisas sertanejas. O mesmo Zé Dantas que, pelo conhecimento vivido, também soube traduzir costumes, sentimentos e ambiências de um interior que não era só paisagem, mas o dentro do coração dos nordestinos, revelando corpo e alma de um itinerário lírico que partia da voz dos cantadores, vaqueiros e dos poetas de cordel e emboladores nas feiras e festas, tudo advindo da poesia provençal de herança da cultura ibérica.

 É preciso também ir fundo no canto dos menestréis nordestinos que povoaram essas mesmas festas e feiras, compuseram e cantaram benditos e ladainhas, com e para as beatas, recitaram versos nos dramas e outras manifestações populares sagradas e profanas, para chegar até o cerne e a origem do que Luiz Gonzaga sintetizou, recriou e vestiu com sua rica verve interpretativa.

 Gonzaga nos encantava de forma singular, vestido de sua própria identidade mais do que regional, entidade universal de sertanejo que existe e resiste em Cabrobó ou na Bretanha francesa. Não à toa, Guimarães Rosa prosou um dia que o sertão está em toda parte e mais ainda no dentro da gente mesma. Portanto, a roupa arquetípica criada por Gonzaga nos veste a todos, nos autoriza a sermos donos de uma linguagem universal que transcende limites regionais e tacanhos.

 A universalidade das letras que seus parceiros versaram dos anos de 1940 a 1980 poderia descrever e potencializar uma literatura de um grande sertão, veredas nordestinas insondáveis, que ganharam amplas dimensões culturais e espirituais para revelar um Brasil menosprezado e oculto por trás do preconceito da erudição acadêmica eurocêntrica. Tal academicismo ainda rege nossos pretensos intelectuais. Subestimar a cultura poética de um povo matuto ou caipira é ir contra a sabedoria popular que engrandece as nações. Antonio Cândido, em sua primeira tese uspiana, prova o contrário, mostrando, por exemplo, que o dito caipira falava e cantava um português castiço, de fonte erudita, de um tempo fundador da língua e da poética portuguesa.

 Afirmo que, mesmo que nada sobrasse de material sobre a terra brasileira, a vasta obra musical e interpretativa da qual Luiz Gonzaga se apropria e recria certamente traça uma cartografia que contempla a geografia ecológica de inúmeras localidades. Descreve sua cultura paisagística do Riacho do Navio ao Rio Pajeú, do Rio Pajeú ao despejar no Rio São Francisco, e do Velho Chico a desembocar no meio do mar Atlântico, traçando uma trajetória sintética e sincrética de muitas culturas amalgamadas por milhões de almas ribeirinhas ou barranqueiras que amam a figura plural e original de Gonzaga.

 Essa cartografia anímica e lúdica traça os mapas da religiosidade fanática, fervorosa e autêntica que herdou de sua mãe Santana, cantadora de benditos e ladainhas nas novenas da fazenda Caiçara. Canta também a fauna e a flora como nunca se imaginou na música feita no país, só depois reverenciada na música de Tom Jobim, que também compôs baião e de quem Luiz Gonzaga gravou magistralmente “Caminho de Pedra”, da parceria de Tom com Vinícius.

 Tomemos, então, por referência, as aves asa branca, assum preto, acauã, fogo-pagou e outros inúmeros pássaros que viraram tema de canções extraordinárias que servem de pretexto, mote e metáfora para falar de relações amorosas, saudades e lamentos sertanejos, desejos e sentimentos vários, de sede de companhia e vasta solidão, que o sertão verte à beira das estradas e dentro dele, da caatinga ao semiárido. Assim como os pássaros canoros, Gonzaga também canta as tantas árvores do sertão, como na música “Juazeiro”, que interpreta de forma pungente e emocionante e na qual versos falam da sombra em que conversavam um ela e um eu que todo mundo tem dentro de si na vontade de amar e se reconhecer no Outro.

A religiosidade atávica também está presente nos versos de muitos parceiros, demonstrando a sua fé, a fé gonzagueana inabalável no que fazia e acreditava ser e ter em tantas canções dedicadas a Padre Cicero, a Frei Damião, a Nossa Senhora, a São João do Carneirinho. Este último, o padroeiro da localidade, cuja imagem foi a primeira de santo que viu e que reverenciava na pequena capela da fazenda Caiçara, onde nasceu, e que tanto lhe encantou o imaginário até que virou baião. A imagem de São João do Carneirinho foi o ponto de partida de todo o seu imaginário de fé religiosa, um São João icônico que ele viu subir nos mastros coloridos junto a muitas fogueiras e forrós pé-de-serra, e, a partir do Nordeste, viu contagiar o Sul e todo o Brasil que, no fundo, é também sertanejo, da amazônia à caatinga, do cerrado aos pampas.



Seus letristas também dão voz a sentimentos arraigados na vocação ancestral de Luiz Gonzaga para recriar ou reinventar um Nordeste que, até então, era menosprezado pela cultura e pela política nos anos 40, 50 e 60. Ele – que, segundo Câmara Cascudo, não é o sertão, o sertão é que é ele - vai dar voz ativa a um povo, uma voz do Brasil oculto, mas nunca inculto e pobre. Ele é a voz do Brasil dos exilados migrantes vindos para o Sul tentar uma outra sorte sem “vidas secas”. Gonzaga é  o cantor do exílio, da minha terra que tem carnaúba e onde canta o acauã e as aves que aqui gorjeiam não só gorjeiam, mas, como no baião “Fogo-pagou”, alimentam muita fome severina.

 Gonzaga deu voz a uma canção emblemática de Patativa do Assaré - o poeta máximo do Nordeste caboclo. “Triste Partida” tornou-se verdadeiro hino e mini épico da migração de nordestinados para virar mão de obra barata, quase escrava, na construção civil de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte ou no trabalho também árduo da lida doméstica dessas mesmas cidades e das tantas periferias dos brasis.

 São esses nordestinos que vão sentir e se identificar com a lírica gonzagueana ambientada em uma cartografia leal e sentimental à cultura íntima de um povo ainda não consciente de seus valores culturais, que Gonzaga vai realçar e divulgar para o mundo. São eles que vão consumir e ampliar essa literatura musicada e cantada com força, de peito aberto por todo um Nordeste que vai perpassar as favelas cariocas e paulistas. Um Nordeste ainda não visto em sua poética rica de verve e ritmos, ainda não sentido e estimado em suas amplas manifestações culturais e espirituais.

 Daí, releva-se uma poesia impregnada do barro do chão, nascida nos anos 40 junto de Gonzaga e do cearense de Iguatu, Humberto Teixeira, ampliada pelo pernambucano de Carnaíba, Zé  Dantas, rediviva no também pernambucano de Sumê, Zé Marcolino, e noutros nordestinos de cepa, como João Silva, seu maior parceiro em número de canções. Houve outros tantos poetas, até então anônimos, nos quais descobriu talentos para dar corpo e sentimento a esta cartografia lírica, anímica, ambiental, espiritual, elevando a cultura do Nordeste ao patamar mais alto da alta cultura brasileira.

 Zé Dantas é parceiro de Gonzaga em duas canções viscerais. Uma, na poética da denúncia, que é “Vozes da Seca”, a primeira canção que poderíamos chamar de protesto, mais de uma década antes que Geraldo Vandré, Sergio Ricardo ou Carlos Lira lançassem suas músicas contra a ditadura militar e a grave situação social no país. “Vozes da Seca” é a primeira canção que dá voz ao cidadão nordestino que não quer esmola, mas trabalho digno e justiça social para todos: “Mas, doutor, uma esmola / a um homem que é são / ou lhe mata de vergonha / ou vicia o cidadão”.

 A outra escrita por Zé Dantas é “Siri Jogando Bola”, inspirada nas emboladas dos cantadores nos desafios públicos, letra que requer do intérprete agilidade e destreza vocal, que só Gonzaga possuía, além do genial Jackson do Pandeiro. É uma letra em que se fala pela primeira vez na bebida coca-cola, que “dá um arroto de lascar”, muito antes de Caetano Veloso, que apenas a bebia na marcha-rancho modernizada “Alegria, Alegria”.

 Ainda em relação a “Siri Jogando Bola”,  Zé Dantas só não engoliu o pão que o capeta amassou quando o apresentador de TV Flávio Cavalcanti quebrou o disco com a gravação de Gonzaga em seu polêmico programa, porque, como médico culto, escreveu um artigo em jornal carioca mostrando, com elegância, a ignorância do apresentador, que subestimou a importância da letra e da música criticada para divulgar mais uma vez um ritmo e uma poética do Nordeste. E tudo com grande inovação de linguagem e uma interpretação genial e gostosa de Gonzaga “lá no mar!”. Aliás, ele, um oceano de sabedoria interpretativa que sabia aliar a poesia, ou a música alheia, com sua verve criativa cheia de improviso e falas inesperadas, antes do rap e do hip-hop invadirem a cena contemporânea.

 É Zé Dantas que também vai compor, e sozinho, “Samarica Parteira”. É uma narrativa ou “causo” em que Gonzaga canta quase falando, com uma sonoplastia tipicamente sua, usando a sanfona ponteando efeitos junto com a boca, a imitar o canto dos pássaros, dos sapos, latidos de cachorros, abrir de porteiras, cascos de cavalos e outros sons acidentais que surgem no caminho de quem vai de jumento, às pressas, buscar uma parteira pra uma quase parida e um aperreado pai, que quer que o empregado volte antes do cuspe secar. Gonzaga conta todo esse pequeno drama nordestino com humor e de forma muito original, como já ensaiava Dantas nas rodas de amigos.



Humberto Teixeira, quando encontra com Gonzaga no ano de 1947, faz com ele, de uma sentada, muitos baiões, xotes e xaxados, como “Baião”, um verdadeiro manifesto musical, em que se ensina como dançar o ritmo, e lançam o movimento cultural nordestino tão importante como seria, décadas depois, a Bossa Nova dos cariocas e a Tropicália dos baianos, para a MPB. Sim, porque foi tudo muito bem arquitetado pelos dois, Gonzaga e Teixeira, para acontecer o que Sivuca, anos mais tarde, chamaria de “operação inversa”, ao trazer a música, os ritmos e os costumes nordestinos para invadirem o Sul, via indústria radiofônica e fonográfica, casadas para ditar a moda para todo o Brasil, como hoje faz a TV.

 Os dois parceiros trouxeram, com urdida poética consistente, os valores culturais e espirituais escondidos, por décadas, da omissão da cultura oficial sulista, como fez a política do Estado Novo, com uma também genial Carmem Miranda, com sua baiana estilizada, para dar boas-vindas à política da boa vizinhança com os Estados Unidos.

 Seria, então, inaceitável a figura emblemática que Gonzaga criaria nos anos de 1940, juntando a figura do cangaceiro e do vaqueiro para representar este Brasil nada folclórico e caricatural que os americanos adoraram na figura ousada, sensual e talentosa de Carmem Miranda. Gonzaga trazia a poética do cabra macho como imagem, mas que cantava docemente e sensivelmente suas dores de amores, carências e saudades de um sertão que fora abandonado por eles por questões de sobrevivência.

Gonzaga procura parceiros nordestinos do sertão brabo para dar sentido a tudo o que viveu na infância e em parte da juventude em Exu, a cidade pernambucana vizinha ao maior celeiro cultural no Nordeste. É a região do Vale do Cariri, com três cidades referenciais para sua família, a Juazeiro do Norte de Padre Cícero, além de Crato e Barbalha, com tradição forte de artistas e artesãos, poetas da melhor qualidade, como Cego Aderaldo e Patativa do Assaré, nascido não muito longe dali.

Gonzaga, com dois poetas das brenhas, Teixeira e Dantas, definiria todo o conceito estético e poético de sua música e do movimento cultural nordestino que queria instalar na cena urbana sulista e urbanizá-la, não só para conferir modernidade ao projeto, mas também para dar outra dimensão cultural ao Nordeste. São esses dois parceiros cheirando a bode e a chão de barro batido, que lhe dão temas e versos viscerais e definitivos para que seu reinado lhe desse fôlego de décadas e vencesse o fatalismo da morte prematura. As comemorações dos 100 anos de nascimento revelam o que nenhum artista brasileiro, até agora, teve de reconhecimento, homenagens e tantas recriações de sua vasta obra.

 Compreendemos melhor isso quando sabemos que Gonzaga influenciou e inspirou gerações de artistas dos mais importantes na música popular brasileira, surgidos desde os anos de 1950, de Sivuca e Jackson do Pandeiro a Gilberto Gil e Caetano Veloso, de Geraldo Vandré e Hermeto Pascoal a Alceu Valença e Fagner, de Zé Ramalho e Geraldo Azevedo a Chico César e Lirinha, todos tributários de um rio sem fim de canções e gestos, que vão além de tantos ritmos e tanta poesis.


Luiz Gonzaga, enfim, é porta-voz de uma conjunção feliz de poetas que recriaram o Nordeste, revelando uma literatura musicada ímpar no país, e talvez no mundo, que cantou e canta uma região nos seus detalhes mais íntimos, com suas formas estéticas mais criativas e suas aspirações e sonhos e utopias mais profundas, que ainda nas noites mais belas de São João, em que o Rei anima festas num céu onde explendem  fogos e estrelas sem fim...